quinta-feira, 27 de junho de 2013

Conto de uma noite de inverno

Noite fria. Nuvens brancas cobrem o céu estrelado.
Permaneço imóvel na janela de madeira, enquanto observo demoradamente a rua.
Pedestres, poucos e rarefeitos, andam de modo ligeiro no meio do breu.
A Lua alta e pálida me mantém acordada, não consigo dormir nem por decreto.
Mantenho-me em pé, mesmo que cansada... E observo a rua e seus transeuntes.
Uma senhorinha, bem idosa, anda como que flertasse com o chão.
Ela sorri, e bem devagarzinho, atravessa a rua extensa.
As lojas, todas fechadas, e no alto do meu terceiro andar, eu fico a olhar.
A sacada onde estou não é grandiosa, nem confortável
mas me sinto agradável aqui. Mais do que estaria na cama, estranhamente.
Perco-me em minhas divagações e quando olho pra rua,
há um rapaz no outro fitando-me.
Nunca o havia visto antes, na vida.
Uma de suas pernas está dobrada, encostada na parede esburacada.
Seus vestes são aparentemente novos, e ele está bem vestido.
Observo que usa um conjunto social preto, e a camisa de dentro é roxa.
Não sei o porquê de observar seus detalhes com tanto afinco,
mas o olhar dele me enfeitiça.
De um modo que contamina todo o meu ser.
Cheguei a arrepiar-me agora. Mas não consigo sair para buscar um casaco.
Quase sinto-me amedrontada, diante deste olhar incessante.
Ele fuma, calmamente, algo que parece um cigarro.
E de repente, pisca-me um olho e desaparece em meio às sombras.

Fecho a janela rapidamente e tranco-a, como num ímpeto desesperado.
Vejo-me no espelho e pareço mais pálido do que realmente sou.
Não vejo beleza em meus cabelos loiro-escuros, ondulados desgrenhados.
Nem em meus olhos marrons-terra.
Nem mesmo em meu colo branco e nu.
Visto um pijama rubro, e mais nada.
Decido deitar-me e tentar esquecer.
Afinal pode ter sido apenas um sonho.

Bom dia, Outono de minh'alma!
Quem disse que estou assim alegre ao acordar?
Talvez um banho deixe-me mais disposta, já que ânimo me falta.
Visto-me, como que roboticamente, e logo após faço um café.
Minha religião é o café de todo dia.
Louvo o café como quem louva a Deus.
Em minha caneca de sempre, adoço-o bem, e abraço as gotinhas insípidas
com meus beijos avermelhados.

Mais um dia entediante de trabalho.
Procuro distrair-me lendo a parte econômica do jornal, mas nem isso.
A sessão de cultura não me tem alegrado.
Acho que envelheci, mesmo aos 30 anos.
Minha idade mental é muito além dos 30. Eu diria, talvez, 70.
Existem muitos idosos de 70 anos que são mais animados do que eu.
Acho melhor não comparar.
O dia foi realmente chato e o tédio me consome até agora.
Ir pra casa é a parte mais animadora, já que poderei inebriar-me de vinho
e ir à saudosa janela.

Banho-me e canto uma canção portuguesa. Fado, isso mesmo.
Adoro as letras tão bem empregadas e entristecidas.
Sinto-me tão próxima da Florbela Espanca, que poderia abraçá-la agora.
Portuguesinha linda, amiga de minhas noites solitárias.
Seu livro está do lado de minha cama. Pra que chore junto comigo.
E as lágrimas caem junto das gotas de água limpa que me banha.
Os cabelos encharcados, meus olhos borrados de lápis preto.
Apenas visto-me com uma blusinha de alça fina, e um short.
Ambos negros, como minha alma.
Penteio levemente os cabelos, controlando minha ânsia irada
de rasgar tudo o que há pela frente.
Penteio e logo acabo. Olho-me no espelho:
Mesma coisa de sempre.
O espelho não engana, nem meus olhos.
A janela está fechada.
Coloco um pouco de força no lado esquerda e abro a janela.
Ela está um pouco emperrada e empoeirada.
Hei de avisar Senhora Dália para limpá-la e ajeitá-la como deveria.
Frustrada, olho para a rua.
Vejo o belo rapaz perdido em seus pensamentos...
Nesse momento, observo que ele existe.
Não foi um sonho!
Ele existe, e ele está perdido em seus pensamentos. Há algo melhor que isso?
Fito-o de modo engessado,
aguardando calorosamente que seu olhar encontre o meu.
Permaneço imóvel por alguns minutos, extremamente calma.
Até que ele olha para frente e repara em meu olhar,
em minha presença,
e sorri.
Sorrio de volta,
e nesse momento, sei que estou mais vermelha do que o tomate da feira ao lado.
Observo-o e ele me observa.
Ficamos por alguns momentos nesse sentimento de cumplicidade,
até que ele foi embora e largou-me um beijo no ar.

Outro dia, e parece que consegui dormir melhor.
Não sei por que, mas o sono encontrou-me essa noite.
Nos braços de Morpheus, permaneci por algumas horas.
Sinto-me menos cansada agora.
Devo trabalhar com afinco, hoje é sexta-feira.
E nada haverá de tirar o prazer de poder dormir durante muitas horas a fio.

Volto para casa e começo meu ritual diário.
Logo após, sinto fome.
Preparo algo para comer, em total desapego.
Como apenas para matar a fome que me mata.
Não sinto muita vontade para cozinhar apenas para mim mesma,
embora conheça várias receitas saborosíssimas!
Vou à janela, e a abro com mais facilidade que ontem.
Dália consertou.
Volto-me para frente, e ele não está ali.
Oh, que haverá de ter acontecido?

Não dormi essa noite. Chorei mais do que de costume.
Embebedei-me de vinho seco e agora sinto-me ressecada por dentro,
bebo litros de água e nada resolve.
A dor de cabeça parece irá me matar, a qualquer momento.
Já vomitei meu corpo inteiro para fora.
Minha alma deve ter ido junto para o ralo.

Dormi algumas horinhas. Finalmente sinto-me um pouco melhor.
A ânsia de vômito diminuiu e a dor também.
Meu quarto está completamente escuro, pois
eu não aguentava olhar para nem mesmo um facho de luz.
O silêncio me acalmava, mas os filhos da vizinha decidiram gritar
e chorar.
E eu chorava junto, mas de dor.
Agora a dor física diminuiu, mas o coração ainda dói.
Abro a janela novamente e nada aparece.
Só breu e lojas fechadas.
Não haverei de me embebedar hoje. Não posso.
Porém não consigo ficar em mim mesma.
Não posso tirar férias de mim? Somente por alguns dias... Eu prometo.

É domingo. E hoje visito meus pais no bairro mais próximo.
Desço as escadas e pego o ônibus.
Em 40 minutos eu chego e toco a campainha.
Abraço-os fortemente e almoço comidinha da mamãe.
Senti a falta de seu abraço materno,
que me protegia de tudo e de todos. Do mundo.
Papai conversou comigo e me deu alguns recados.
Familiares têm me procurado, mas eu só procuro meus pais.
Falsidade tem limites, e eu tenho os meus limites também.
Paciência já é curta, prefiro então não encurtá-la com tolices.
Passo o dia com meus queridos e ao cair o dia, vou-me para casa.

Desci do ônibus mas preciso caminhar um tanto até meu apartamento.
É um caminho um pouco escuro e procuro andar rapidamente.
O perigo nos espreita.
Olho para os lados, e ando ligeiramente, mas
vejo um homem atrás de mim.
Ele anda rápido e logo consegue me alcançar.
Desespero-me mas procuro não demonstrar, pois seria pior.
Ele me pega pelo braço e coloca um punhal em meu pescoço.
Senti a lâmina gélida.
Meus olhos ardiam de um misto de pavor e ódio.
Eu não sabia bem o que fazer,
nem dinheiro ali eu tinha. Apenas algumas notas.
Ele achou pouco e disse que iria me matar.
Ora, morta já estou. Que diferença haverá de fazer?
Ameaçou tirar minha vida, tão próximo de minha casa.
Em segundos, ouvi o som da lâmina cair no chão, e
ainda com os olhos fechados, ouvi um grito sufocado pelas mãos.
Decidi abrir os olhos:
O homem maldito estava caído no chão.
Do lado, o herói sumido.
Abraçou-me e perguntou se estava bem.
Não consegui esboçar nenhuma reação, e
nem balbuciar uma singular palavra.
Ele sorriu e puxou-me, carinhosamente, pelos braços.
Levou-me até em frente a meu apartamento,
quando ali chegamos eu segurei sua mão
e puxei-o, para subir comigo.
Ele aceitou, como num ímpeto.
Nada havíamos falado até então.

Abri a porta, entramos, acendi a luz.
Olhei seu rosto com a claridade. Foi tão diferente!
Ele estava coberto de sangue, oh meu deus!
Ofereci-o a tomar um banho e ele aceitou.
Demorou uns 5 minutos e enquanto isso, eu lavava sua camisa
empesteada do líquido rubro.
Ele ficou apenas de calça e não parecia se incomodar, mas eu sim.
Estava completamente encabulada.
Ele explicou-me que era policial. Acalmei-me diante do fato
que ele havia matado o sujeito.
Foi legítima defesa, ele disse.
Menos mal.
Se apresentou. Disse-me seu nome e eu disse o meu,
ainda envergonhada.
Estávamos sentados na minha cama,
o apartamento é realmente ínfimo.
Meu belo príncipe disse que estes arredores faziam parte de sua rota
e que nos dias anteriores, ele precisou se afastar:
Sua mãe havia falecido. Quanta tristeza!
Doeu-me o coração de ouvir tais palavras.
Abracei-o sem nem mesmo pedir.
Senti gotas escorrerem pelos meus ombros.
O abraço durou um século, e eu amei cada segundo.
Beijou-me, finalmente. Como veneno que mata e salva.
Seus lábios pareciam uma droga - Altamente viciante.
Inebriei-me de cada segundo de sua presença.
A luz batia e a palidez conjunta parecia magnificente.
Ele despertou em mim o que ninguém havia feito,
nunca em meus 30 anos.
Demorei-me em cada canto de seu corpo,
como que cultuasse a um deus.
Suas mãos grandes e seus braços fortes me faziam sentir completa.
A solidão haveria de permanecer agora somente nos livros da cabeceira.
E o quarto pareceu enorme para nossos corpos entrelaçados.
E pequeno para nosso amor.
Ali, eu amei. E fui amada.

Th. Barbiere
27/06/2013

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Melagcholía



Melancolia não é um estado de graça. Nem tristeza digo o ser.
Melancolia é um sentimento forte que resiste às distrações. 
Falo com toda a experiência que me foi oferecida.
É uma falta de entusiasmo com relação a vida, para com todos.
É uma falta de predisposição para quaisquer atividades que envolvam existir.
Melancolia vai além de um simples período. Ou certos momentos específicos.
A Melancolia, tendo uma vez te escolhido, te acompanhará para todo o sempre.
Ela se assemelha ao luto, mas sem necessariamente uma perda.
É um luto interior. Mais do que um luto narcisista.

O melancólico se observa como inútil - Como todos somos, na realidade.
O melancólico não é capaz de amar. Não mais.
Provavelmente já amou alguma vez na sua insignificante vida.
E nessa única vez que seja, ele morreu. Morreu dentro de si.
O melancólico tarda a sentir prazer. O mundo parece tão desinteressante.
Nada o chama atenção ou o excita. 
Raramente consegue sentir dor ou medo. Ele é inerte, definitivamente.
Em sua languidez, sofre dia após dia. 
Com uma vida que não sente. Não sente nada.

Tudo isto eu explico ao mesmo tempo que observo.
A Melancolia é uma amiga doce, porém perigosa.
Ela me permitiu escrever sobre a mesma, ainda que rapidamente.
Somos amigas de longa data, devo dizer.
Expeliu-me palavras milimetricamente cuidadas,
como numa engenharia perversa.
E no vão de seus andares, consegui descrever seus jeitos,
seu modo de agir. E como abraça os coitados inférteis.
Aqueles, que assim como eu, se sentiram impressionados
e desafiados, diante de tamanha magnitude.
A magnificência do Spleen.

Th. Barbiere
24-06-2013 22:11