sexta-feira, 23 de abril de 2010

Fica comigo esta noite

Conto: Fica comigo esta noite

Preciso dizer aqui que este é um dos meus primeiros contos, e portanto, decidi viajar um pouquinho nele. Fiz, então, uma história de desilusão e desencontros emocionais. Não tem como inspiração uma história específica da vida real.


"Olá, como estás?" é a minha primeira pergunta. Olho para ti e procuro mergulhar no anilado cor-de-safira dos teus olhos. Respondes-me que estás bem e muito feliz, embora eu possa tranquilamente observar que segues em inquieta agonia. Sorrio. Fazes-me então, a mesma pergunta, afastando-se um pouco, como se não desejasses ouvir a resposta. Sabes, meu bem, que não sou de mentir... Porém tampouco irei dar-te o prazer de saber de meu pesar. Digo-te que estou a seguir minha vida, e que meu trabalho está a consumir todo e qualquer tempo que eu possa ter.

Caminho lentamente rumo à minha casa. Dou passos lentos e perdidos, como se não conhecesse o lugar, e estivesse noutro nunca visitado por mim. Demoro ao menos meia hora a mais. Óbvio que tu me causaste tal lerdeza. Coloco-me a ler um livro de poemas. A melancolia brota ainda mais forte, mas talvez eu seja um pouco culpada... Estou a ler versos que detalham minha dor:

"ALMA PERDIDA

Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente ...
Talvez sejas a alma, a alma doente
Dalguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste ... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh’alma
Que chorasse perdida em tua voz! ..."


Florbela, em poucas linhas, conseguiu explicitar o nosso amor. Dolorido, triste, finado. Não posso viver contigo, tampouco longe de ti. Sinto em tua fraqueza que teimas em esconder, que também não consegues tal aventura. Tu és a minha alma, e com ela choro lágrimas aflitas.

Tento dormir, mas a insone Lua me observa. Vou à janela e ponho-me a flertar com sua beleza desigual. Minha vontade era poder pegá-la para mim e defendê-la das estrelas, que invejam sua luz. Gostaria de protegê-lo deste mesmo modo, amor... Mas sou fraca demais perante ti. Tua presença inebria minha mente, e mesmo ausente, sinto-te perto de mim. Sei que estás a imaginar o meu calor, por mais que estejas abrigando outra em teu cômodo.. Em teus lençóis brancos, que sempre gostaste. Dizias-me que eu parecia angelical no meio deles. Que tu gostavas de ter esta memória de mim, toda hora.

De algum modo, tenho a plena certeza de que não estás sozinho agora. É como, se num lapso de tempo, eu o visse, a divertir-se com uma daquelas tuas amigas do Tribunal. Todas as vezes que fui ver-te, observei os olhares curiosos sobre a minha pessoa. Como se desejassem meu óbito. Era clara a contemplação delas com relação a ti, meu bem. Tão belo que és... Tua barba negra em nada o envelhece, e tuas madeixas longas e presas que o tornam tão exótico. Meu cigano.

Ainda me pego, às vezes, caminhando rumo ao Tribunal. Quando reparo, já estou perto e rapidamente, dobro noutra rua. A ideia de encontrá-lo é excitante, mas não devo. Não novamente. Não tenho como prever como agiria, por mais que a calma e o autocontrole me sejam características descritivas. Meses se passaram desde que trocamos aquelas poucas palavras, e não sei mais como estás. Coragem me falta para perguntar a um de nossos amigos em comum: Surgiriam comentários e eu prefero então, não saber. Mas a dor é grandiosa demais, meu querido. Presentiei-o com meu coração, e agora sinto como se não o tivesse mais. Sinto-me sem emoções, sem sentimentos... Exceto a dor, por tua causa e indiferença, pelo resto do mundo.

Onde trabalho, sou vista como alguém sociável, mas não como tu és. És a luz por onde passas. Eu, contudo, vivia desta luz, como a Lua se alimenta do Sol. Tua voz ecoa e todos desejam ouvir ao menos dez segundos de teu canto jurídico. És bem-visto e amado por todos e todas. Não tive, porém, a mesma sorte. Irredutivelmente sincera, não é qualquer um que gosta de ter comigo. Minhas palavras muitas vezes soam como farpas, rasgando onde tocam. Também sofro de males como auto-reclusão, e agora mais do que nunca. Sempre fui gàuche (Já dizia Carlos Drummond), à margem da sociedade, me prostrei perante tua presença. Avidamente, estava a observá-lo e a desejá-lo mais que tudo. Antípoda de ti, apaixonei-me pelo teu pólo.

Tu viste um não-sei-o-quê em mim. Viste neste animal selvagem, um tanto de acanhamento infantil. Tu já me disseste uma vez que o que mais prezas em mim é a inocência. Admiravas meu jeito ingenuamente apaixonado, e por muitas vezes, bobo. Certo dia, descobriste que quando me beijavas o rosto, eu invariavelmente corava. Passaste então a beijar-me e afagar-me sempre, tamanho o prazer que sentias em ver-me enrubescer! Ah meu amor, eras encantadoramente meu!

Os dias eram incompletos se não nos víssemos. Havia uma determinada necessidade de aproximação constante, porém nunca nos prendemos de modo a parecermos definitivamente enamorados. Éramos racionais demais. Até eu. A pessoa que deveria construir a relação com moldes emocionais, nunca conseguiu ser emotiva. A racionalidade sempre me consumiu a mente e o corpo, e enxergo o mundo sob a ótica diretamente determinada pela lógica. Ah meu bem, sou como a onda, que vai e vem. Nunca desejei ser como um lago, parado. Pensava que me entendesses...

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